sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Um Cão Domingo

Um Cão Domingo (Desassossego IV )

Desde tempos imemoriais discute-se a natureza do domingo. Renato Carneiro Campos despiu o domingo com a sua pena-lâmina, fazendo chorar as frutas maduras e assinalando o dia, como guardião das sensações fundamentais.
Em Brasília, um domingo perdido no calendário das coisas acontecidas eu e meu cachorro parlamentávamos sobre a natureza dos homens, sobre o que lhes fustiga a alma e arrepia a pele do pensamento.
Fidel, cão amigo, um beagle-paisagem, olhava-me, os olhos nos meus, cúmplice, rosto interrogativo, levemente inclinado, orelhas despertas - sinal da sua concentração – e, atônito, dizia-me: ‘reguemos o jardim que as flores brotarão com força‘. Admoestado pela canina lucidez, eu cismava: a solidão e o silêncio são uma dádiva e as flores, luxo de quem alimenta formigas, devem ser reverenciadas...
A casa estava quieta, eu e o cachorro à porta da solidão domingueira, as borboletas tamborilando sobre as folhas, a luz ricocheteando sobre a água, sobre as palmeiras, sobre o olho do animal, fazendo o marrom mudar-se em amarelo e ferver o mel da expressão.
Abri a mangueira d’água e senti prazer em vê-la escorrer sobre a tarde quente, o cheiro do cerrado penetrando as narinas, como se o bolo da vida estivesse sempre saindo do forno.
Fechei os olhos e deixei vaguear o pensamento, como revoluteia a fumaça do charuto, no céu da boca tomada de sensações.
A casa estava plácida como um jardim espanhol, molhado, cantante, como aquele dos mouros, dos reais alcazares, onde se respira frescura e quietude.
Olhei as papoulas plantadas por mim ao longo da cerca e vi que a vida, como o jardim que nos cerca, é fruto da dedicação de um jardineiro fiel. E tomado pela angústia – alma do domingo – sorvi o conhaque com resignação.
Qual é a natureza do domingo?
Afundado em minha rede em Aldeia penso que o domínio do tempo é uma arte. A angústia é filha dos relógios, dos calendários, do seu passo implacável, do seu apetite devorador, do seu micróbio demoníaco, do seu verme.
Penso no domingo como o dia do martírio. Por mais belos, os verdes são perfurantes; por mais despudorados, os azuis são cheios de espinhos.
Afundado na rede, pilhas de jornais de um lado, revistas e livros do outro, vejo que o jardim está cuidado, as begônias enfeitam a lapela da tarde, enquanto as bromélias e as palmeiras ciciam. Por que, então, tamanha melancolia? É o triste do domingo, diria meu fidelíssimo amigo. E arremata, latindo como quem chora: ‘ a melancolia é um mal necessário e o dia de falso descanso tanto serve à expansão, ao cometimento, como ao ofício de pensar, dia de encolhimento, dia de concha ‘. Cachorro bom, o meu.
Salto da rede, aspiro o cheiro de húmus que vem da mata e espreguiço o músculo do coração, indo eu mesmo correr o jardim, tocar as folhas, ver os canteiros, falar com as plantas...
O exercício de deixar a terra entrar pelas unhas acalma, relaxa. A natureza do domingo não é diferente da natureza dos homens. Ela só pede que fiquemos atentos ao vôo dos morcegos. A vida está nas pequenas coisas. Vejo uma teia de aranha tecida ao acaso na porta da frente. E olhando aquele bordado inusitado vejo que o domingo, como a vida, é o que fazemos dele. Assovio chamando Fidel e este, rabo ativo de contente, levanta-se com a disposição dos que peitam a tristeza com a descoberta de que a vida é desafio. Está pronto para sonhar o dia. Leio Manoel de Barros e deixo que as palavras simples irriguem a vida...
De um banco de onde posso ver a maior porção de jardim, lembro daquele domingo planaltino em que recuperei o meu patrimônio extraviado: o céu da deslumbrada infância, um pomar de estrelas, um curral de nuvens afoitas... E o domingo se vestiu do fraque azul do poeta Carlos, um jardineiro fiel.
* Tadeu Alencar - Procurador da Fazenda Nacional e Procurador Geral do Estado.

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