segunda-feira, 24 de maio de 2010

Desassossego I

A volta.

“Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto." Livro dos Desassossegos - Fernando Pessoa



Porque sempre nessa maldita hora esse incômodo vem tirar meu sono. Nem sei se posso chamar de “incômodo” esse enjôo do caralho, essa azia que me faz arrotar a bílis, essa náusea. Foram tantos os sapos que já engoli na vida que já devia estar acostumado, já devia fazer parte da minha dieta. Sapos dessa cidade louca e não as rãs fritas que apreciava tanto lá na minha terra. Se eu vomitasse a todos e a tudo que tem me feito mal, talvez eu melhorasse. Mas eu não consigo. Quero levantar, sei que o sono não mais virá. Mas também não tenho o que fazer. Estrebucho na cama estreita. Espero que o dia me aquiete.
Escuto no quartinho do lado mais uma vez a porra da vizinha a dar um esculacho no marido que chegou bêbado. Quando escuto essa confusão toda, mais a sirenes que não param de apitar me pergunto o que vim fazer nessa terra. Pensava que ia ficar rico. Me sinto enganado pelo meu próprio irmão. Quando ele enfiou no meu juízo a ilusão besta de que aqui era o paraíso. Um engodo, somos um engodo. Ele leva uma vida de merda e acha que é bem melhor do que os ouros que ficaram lá na casa de mãe. Lugarzinho que também não era lá grande coisa. Mas pelo menos havia espaço para respirar.
Estou com o peito apertado. Não é um infarto, eu não morro assim de repente. Pei puf! Nem isso me acontece. Fico aqui vegetando, definhando morrendo aos poucos.
Não tem marcela, não tem bicarbonato, não tem sonrizal, não tem chazinho de mãe que acalme essa azia. Se tivesse alguma grana no bolso levantava e ia tomar uma gelada. Quem sabe bêbado conseguisse dormir.
A cabeça ferve com pensamentos bestas. Quero voltar. Devo voltar? Terei coragem de voltar com uma mão na frente e outra atrás e assumir a minha derrota. Vim achando que seria um vitorioso. Ajuntaria uma grana e voltaria, teria um moto, um ponto comercial, e nenhum patrão filho de uma puta mandaria mais em mim. Nem eu me comando. Será que eu consigo voltar?
Ao meu lado no beliche, meu irmão ronca e peida indiferente ao meu desassossego. Não sei quem é mais idiota se ele ou eu que ainda acho que há alguma saída para essa minha vida de merda. Essa cidade faz tudo virar água suja que corre para um rio fedido, que se quer vai para o mar.
O clarão das luzes dos faróis dos carros parecem fantasmas que entram pela janela. Fico contando as sombras pra ver se o sono chega. Pareço ter ouvido de tuberculoso. Todos os sons das entranhas do prédio fazem um barulho enorme nas minhas oiças. Passos no corredor, choro de menino, descargas, ranger da porta de entrada que não para. Acho que nesse prédio mora quase a minha cidade inteira. Uns apinhados nos outros.
Os barulhos e os fantasmas da minha cabeça. Busco no passado um alento, mas tenho levado tanta porrada que tenho até medo de pensar em coisas boas. Mesmo as passadas, que não foram muitas. Mas pelo menos tinha a esperança, um fiapo de sonho de que quando viesse para cá o mundo se abriria para mim. Mundão. Sim, mundão, tão grande que me assustei na chegada. Outra paisagem tão diferente do que eu tinha imaginado. Tanta gente tanta confusão na rodoviária. A cidade se abriu para mim, no começo como um sonho, depois um pesadelo. O tempo é como formiga cortadeira. Na virada da noite ela acaba com todas as folhas de esperanças. Amanhecemos um galho desfolhado. O que vim buscar era uma coisinha melhor. Não é que não tivesse coragem pra enfrentar a labuta. Nunca fui frouxo. Trabalho desde menino, vendendo ovos para depois meu pai tomar de cana. Tinha que esconder o dinheiro. Agora sou eu que encho a cara. Estou cansado dessa cidade. Quero ir embora. Mas o asfalto parece prender as minhas pernas, roubar minhas energias, minha coragem. A cidade tem um visgo que prende a gente. Lembro quando na roça passava o visgo nos galhos pra pegar os canarinhos. Eles vinham, pousavam e depois ficavam tentando voar com os pezinhos presos no visgo. Passavam a cantar e avistar o céu azul de dentro de uma gaiola. Já não avisto um céu azul faz muito tempo. É como se a cinza da cidade tivesse pregado nos meus olhos. O médico da firma falou que não tenho nada nos olhos. É só embaçado. Lembro como uma névoa apareceu de repente nos olhos de minha avó quando mataram meu tio. É isso. Sinto uma tristeza e uma saudade que esfumaça e embaça minha visão.
Ah noite comprida!
Alguém ligou um rádio bem alto. Isso é hora? Assim com os olhos fechados, com a música tocando lá longe, lembro um passeio numa roda gigante.
Duas coisas cegam um homem: amor e desgosto.
Com o amor só avistamos a pessoa amada. Não vemos nenhum defeito e tudo é bom. Quanto tempo dura um amor? São nessas noites que sempre vem a lembrança dela. Já foi o tempo.
Não posso me iludir achando que ela ficou me esperando. Essa cegueira eu já não tenho. Fui covarde quando o pobre pai dela me perguntou se eu queria casar e se iria voltar. Não respondi que sim nem que não. Tava de mala pronta. Vim embora sem uma despedida. Por sorte ela não ficou grávida, esperando outro desvalido como eu. Dei muito desgosto.
Quero voltar, mas não tenho pra quem voltar.
Nem para a minha mãe, aquela que me pariu e quando morreu não teve um caixão descente, porque não tive como mandar dinheiro para comprar. Chorei como um borrego desmamado, quando recebi o telegrama de minha irmã mais nova pedindo um ajuda para o enterro. O estrupício do meu irmão, ainda teve a coragem de dizer que pra ser enterrado não tinha que ter luxo, a terra ia comer do mesmo jeito. Não ia enterrar o dinheiro dele junto com mãe. Foi nesse dia que achei que não tínhamos vindo do mesmo ventre e foi nesse dia que começou essa minha azia, e a mania de acordar sempre na mesma hora veio logo depois. Esse desassossego.
Desgostos todo mundo tem. Mas tem uns que são premiados na loteria do desgosto. Com desgosto ficamos cegos para o passado e para o futuro. É como nos filmes de vampiro que vi no cinema, quando olhamos no espelho não vemos nossa imagem. Pois somos nada, só desgosto.
Na escuridão da noite nesse quarto avisto tudo melhor do que de dia.
Estou cansando mais o sono não vem. Só assombros. Sinto os calos das mãos. O cabra anda, anda achando até que vai chegar ao fim da cidade para chegar no emprego, trabalha dez horas, pega pesado e depois... Pra nada. É vida não. É um assombro. O sujeito não ter um lugar a onde cair morto.
Não sou ingrato. O pecado da ingratidão eu não tenho na minha conta. Posso ter muitos outros. Esse quartinho que estou é melhor que está na rua ou debaixo de uma dessas pontes. Tenho um teto com uma mancha de mofo sobre a minha cabeça. Um dia ainda vou passar uma mão de cal. Foi meu primo que arrumou para nós. “Podia ser pior”, disse ele para nós quando entrou no ônibus de volta pra sua cidade, “o quartinho é bom e baratinho”. Se despediu e foi levando o rádio que eu tinha comprado com muito sacrifício como pagamento da sua bondade. Levou minhas músicas, meu rádio, mas não sou mal agradecido. Me deixou num canto e me levou os outros cantos mais formosos. Nesse prédio parece que Deus juntou tudo quando era de gente fodida e colocou para morar juntos. E disse: Quem sobreviver vai para o inferno que é um lugarzinho melhor.
Queria voltar ainda com alguma força para trabalhar ou mesmo pra morrer lá. Penso que pelo menos se voltar, serei enterrado na terra que nasci, seca, dura, mas estarei perto dos meus conhecidos.
“Pensamento torto esse seu”, me disse certa vez meu irmão. Talvez ele esteja certo, morto, os únicos conhecido que terei serão os vermes. E tanto faz os vermes dessa cidade como os de lá. Os de lá são mais “michoruquinhas”, tem menos gente pra comer.
Essa peste de dor de estômago, essa queimação, azia, esses fantasmas, esse barulho, esse peito apertado, essa agonia.
Se tudo isso não estivesse me incomodando, e fossem outros os tempos, até riria das minhas próprias besteiras e toda essa prosopopéia. Já fui alegre, gargalhador, cheio de pilhérias e anedotas. Depois de tomar uma meiota contava um monte de anedotas. Lá na firma um cara chegou a dizer que eu levava jeito pra palhaço. Não sei se era um elogio ou uma mangofa.
Perdi o costume do riso.
Estou seco como algumas cacimbas na época do verão. Você grita dentro delas e escuta somente o eco seco, diferente do eco úmido da época do inverno.
Quem dera poder voltar na época do inverno. Quem sabe no próximo.
Um copo de água talvez alivie essa minha azia, minha secura.
Levanto no escuro e vou até uma quartinha, que está sobre um banco no canto do quarto. Uma quartinha de barro, presente da minha mãe quando vim embora. Tateando procuro o caneco que geralmente fica na boca dela. Seco viro a quartinha no copo. Ela também está seca, vazia.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Meus Desassossegos

Outro dia li "O livro dos desassossegos" de Fernando Pessoa. Já vinha querendo escrever contos com essa palavra "desassossego". Gosto dela assim como gosto de sossego. E para mim, assim como sossego é algo diurno, o desassossego é noturno. São nas horas noturnas que ele espreita, deixa a alma avexada. E cada vivente tem os seus, assim como teve o poeta Fernando Pessoa. Sendo assim resolvi publicar alguns desassossegos e convidei amigos e amigas a escreverem também seus textos sobre o tema, ou que me permitissem publicar outros textos já escritos, que de algum modo refletissem desassossegos. Deixo claro, que não temos a pretenção de nos compararmos ao poeta, apenas nele buscamos a inspiração no que é tão humano: o desassossego.