segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Meus velhos livros

Meus velhos livros.

Certo dia no meio de uma polêmica de como organizar minha biblioteca meu afilhado me perguntou porque eu tinha tantos livros e se eu já tinha lido todos. A pergunta talvez fosse simples e merecesse uma resposta simples, curta. No entanto, eu estava com tempo e respondi de maneira longa, quase uma história. Fiz assim como fazem as mulheres todas as vezes que alguém comenta a respeito de um vestido que elas estão usando. Elas contam uma história.
Contei para ele o quanto gostava de ler gibis quando era um guri da idade dele. O apreço pelos gibis me fez gostar da leitura. Lembrei do dia em que ganhei meu primeiro livro.
Era madrugada do primeiro dia de férias, ainda meio sonolento, vi quando meu pai chegou da rodoviária com a minha irmã que morava em Natal. Além da saudade da irmã que tinha ido embora pra capital, tinha sempre uma grande expectativa dos presentes que ela trazia. Uma besteirinha qualquer era um presentão. Naquela vez ela não me trouxe nenhum brinquedo ou alguma guloseima, me trouxe um livro. Um belo livro. Lembro até do cheiro de tinta nova. Capa dura sem muitas figuras e com muitas palavras. A Vida e as Estranhas Aventuras de Robinson Crusoé um clássico, que na época eu nem sabia o que era um clássico ou mesmo um best-seler. Eu menino pouco afeito ao futebol, devido a minha miopia, resolvi canalizar as minhas energias para a leitura e as punhetas normais de um guri da minha idade. Robinson Crusoé veio dar um colorido novo à minha vida de menino lá do cariri. A aventura, a solidão, a engenhosidade e as inquietações daquele naufrago se instalaram na minha alma assim como o gosto pelos livros. Nunca tinha visto o mar e o livro me fez navegar, saber das tempestades, dos piratas, como sobreviver. Vejam só, um livro inglês de 1719 foi mexer com o imaginário de um menino nordestino em 1969. No sítio da minha tia trepado nas mangueiras somente na companhia do cachorro surubim, meu Sexta Feira, me imaginava naufrago a enfrentar piratas. Daquele dia em diante tomei gosto pelos livros. Lia de tudo. Os pequenos livros de faroeste americano, livros com as histórias dos santos, a bíblia, cordel, até o dia em que meu professor Ribamar meu deu um clássico brasileiro: Dom Casmurro. O fantástico é o que uma história bem contada nos faz, além de nos transportar para a época narrada, pode nos proporcionar a mistura de nossas histórias e com elas aprender pra vida. Até mesmo achar que nossa história é um livro ou que o autor nos conhece, sabe das nossas dores misteriosamente. Vejam só, assim como Bentinho minha mãe queria que eu fosse padre. Aí já deu o gancho! Estava apaixonado por Lavinha minha vizinha, nela meus olhos viam minha Capitu. Eita! Tão interessado e envolvido na história de Machado que descuidei de Lavinha, que foi se enamorar de Emanuel que tinha bicicleta, sabia jogar futebol e estava cagando e andando para os livros de romance. Mas não desanimei. Se os livros eram mais fieis não desisti de amar e desejar as mulheres. Eles os livros ate me ensinaram muitas coisas boas, bonitas para dizer nas horas certas de encantamentos e desfrutes. Poemas, histórias de amor, de aventuras, tratados filosóficos, relatos, biografias de pessoas tão ilustres tudo eu ia apreciando, procurando, curiando, querendo aprender, saber...o que? Pra conhecer uma outra alma conheça primeiro a tua já disse alguém em algum livro já lido. Deve estar lá na estante me esperando para ser relido e fazer eu descobrir que nunca conhecemos profundamente a nossa alma, muito menos as das mulheres sejam elas Capitu, Julieta, Maria Homem, Gabriela, Clarice, Guiomar, Luisa e tantas outras. Ao revisitarmos as nossas entranhas nos surpreendemos, assim como um livro quando é relido e observamos nuances, detalhes, frases preciosas que na primeira leitura não vimos. Até porque não estávamos preparados. É...Tem disso. Alguns livros devem ser lidos na maturidade certa e isso é inexplicável, pois cada um tem o seu momento certo. Um livro pode trucidar uma alma assim como transformá-la completamente. A Mãe, de Gorki, para mim foi um livro que me deu esperança, crença em um ideal e acho que o li no momento certo. Os nomes russos eram um horror para minha compreensão, mas a coragem, a luta revolucionária, o amor da mãe para entender aquele espírito rebelde, a amizade lapidaram minha alma juvenil... Já o livro Crime e Castigo comecei a ler num momento inoportuno. Não estava preparado. Tinha pesadelos terríveis, acordava suado, assustado e tive que parar de ler. Somente tempos depois foi que consegui ler sem tanto sofrimento. Mas se os livros podem provocar sofimento também trazem as delicias o contato com os prazeres mundanos. A sensualidade e erotísmo com que Jorge Amado descrevia as histórias de amores no meio dos reboliços das brigas dos coronéis ou mesmo a singela passagem em que Dora se entregou a Pedro Bala me comoviam e me deixavam excitado. Muito hormônio, rapaizote, qualquer insinuação era motivo para os pensamentos fantasiosos. Imaginação não me faltava e os livros vieram pra ampliar as possibilidades criativas.
Mostrei para o meu afilhado dois livros que tenho muito apreço. Um eu não consigo ler uma palavra. Moby Dick romance do autor americano Herman Melville edição em alemão de 1954. O livro é lindo, tem uma capa de madeira as ilustrações feitas a bico de pena. A abertura era inteligível mesmo em alemão, era forte, talvez por que já conhecesse da versão em portugues: " So nennt mich denn Ismael. Chamai-me Ismael. Se não conheço a língua posso apreciar a forma, o feitio caprichoso, a beleza dos desenhos. Nem tudo a gente precisa entender para apreciar. O outro é um livro de poemas de Gonçalves Dias que em 2010 fará cem anos. Cinqüenta anos mais velho do que eu. Os poemas são lindos, o livro é pequeno com uma capa vermelha surrada, folhas amarelas que pedem cuidado, delicadeza no manuseio. E nele mais uma lembrança de quando menino tive que decorar "Minha terra tem palmeira onde canta o sabiá". Um livro de cem anos.
Quando nos meus cem anos eu chegar, caso eu chegue lá, eu o darei para o meu neto e talvez ele nem entenda o que é um livro ou porque eu guardei um “objeto” tão estranho, assim como o disco de vinil é para alguns jovens de hoje. Mas eu serei um velho assim como o livro e espero ainda estar cheio de poemas. Espero que meu neto que ainda virá, não precise entender tudo, o todo para amar um presente que veio do passado e que por muito tempo criou futuros. E ele lerá para mim: "Houve um tempo em que eu pedia uma mulher ao meu Deos. Uma mulher que eu amasse. Um dos belos anjos seus", Estão lá os livros a minha espera.