domingo, 14 de junho de 2009

Garrafas com Mensagens lançadas no rio Tejo

Garrafas com Mensagens lançadas no rio Tejo


“O tempo que é intolerante com os audazes e com os inocentes e que em uma semana esquece um corpo belo, venera a linguagem e perdoa aqueles que a fazem viver.” W.H. Auden, “em memória de W.B. Yeats

Começo com uma citação, que me faz ter presunção que não escreverei algaravias, por tentar colocar no texto sentimentos vividos numa viagem feita em busca do passado ancestral na terra de Pessoa e de Cervantes. Foi entre Lisboa e Madri, que o desejo de reter a memória em palavras se constituiu como modo de suplantar o medo de enfrentar o tempo, esse intolerante que é capaz de corroer feitos heróicos marcado no ferro ou nas paredes dos castelos. Quanto mais as simples lembranças de um vivente, que na companhia familiar, buscava apenas encontrar as raízes e o sentido do que era.
Alerto aos incautos futuros leitores, diante mão sei que não escreverei com o primor dos mestres já citados. Mas não tenho esse arroubo, pois o que me leva a escrever é apenas dois intuítos: um já revelado acima, e o outro o de compartilhar. Portanto, nos resta cumprir os desígnios da escrita e da linguagem que é escavar as profundezas da alma, das experiências vividas e nos deparar com a condição humana, numa troca entre o que escreve e o que ler. Contar um pouco dos sentimentos que me acometeram, talvez...
Por isso escrevo em meio/Do que não está ao pé,/Livre do meu enleio,/Sério do que não é/Sentir? Sinta quem lê!”
Estávamos em quatro, dois homens e duas mulheres. Eu já na minha meia idade voltava ao velho continente, porém às terras nunca antes vista, mas tão conhecida nossa pelos costumes, histórias, língua e cultura. Portugal e Espanha. Meu sogro buscava nas terras portuguesas e espanholas restos do que fora seus antepassados. Ele um septuagenário com o agravante de estar com Alzheimer. Minha mulher e a esposa dele empenhadas em realizar talvez um último desejo dele, conhecer as terras dos seus ancestrais, antes que a enfermidade avassaladora apagasse de vez a memória do que era, do que fora. Desde o começo da viagem me perguntava o que buscávamos o que aprenderíamos em tão distinta situação. Sabia que não seria uma viagem fácil, não só pelas condições que se apresentavam como pelas idiossincrasias tão diferentes. Há um ditado na minha terra que diz que para conhecer o outro tem que comer um quilo de sal com ele. A convivência rotineira ou a situação peculiar de uma viagem a terras estranhas ou estrangeiras é capaz de revelar um pouco mais de nossas sombras e luzes.
A primeira coisa que se revelou, foi que estávamos buscando compreender o que o tempo/memória havia feito conosco. Era perceptível ou muitas vezes sutil a presença do “tempo intolerável” como companheiro de viagem. Intolerável com os monumentos, com a história, com os amigos que encontramos, com nós mesmos.
As experiências vividas e as marcas culturais do que acreditávamos que fossem nossas matrizes, enquanto indivíduos ou povo, se apresentavam como um labirinto a ser percorrido. As ruas de Lisboa eram um espelho desse labirinto. A convivência cotidiana em terras estrangeiras também nos traria isso no aspecto mais singular e pessoal. Mesmo para a filha, a convivência constante de mais de vinte dias com os pais há muito não era experienciada. Para nós dois forçosamente haveria o espelho do que seria uma relação longa e o que significava envelhecer. Se nós filhos do novo mundo voltávamos para o velho mundo em busca de conhecer o que nos formava, era nos mares das emoções da relação familiar que jogávamos nossas caravelas, pois "navegar é preciso mais viver não é preciso". Viveríamos a busca e a perda da memória e suas implicações. A dificuldade de como lidar com uma doença degenerativa sem infantilizações do outro, como respeitar a alteridade, como aceitar sem fatalidade as condições adversas que a vida nos traz e como re-aprender ou aprender novos modos de lidar com as questões mais prosaicas e práticas cotidianas.
Tínhamos traçado uma rota que não pode se cumprir na sua totalidade. Conhecemos em Portugal Porto, Fátima, Lisboa, e na Espanha, Madri. Antes havíamos passado por Paris. Havia eleições para o parlamento europeu e a TV ou os cartazes nas ruas falavam de crise e sub-repticiamente destilavam um discurso xenófobo. O velho mundo estava intolerável com todos aqueles por eles chamados de estrangeiros. As muralhas foram re-erguidas ou talvez nunca tenham sido demolidas. A palavra de ordem era a mesma de quinhentos anos atrás, fora os “mouriscos, os marranos” ou todos aqueles que não são considerados europeus, cristãos, brancos. A Europa virara as costas para aqueles que antes foram de suas colônias. Para muitos estes não merecem viver as benesses da comunidade européia. Riqueza usurpada e produzida com o trabalho das antigas colônias.
A história só se repete como farsa, dizia o velho judeu europeu Karl Marx. Vivemos um tempo farsesco, mas não menos cheio de intolerâncias que tempos idos. No entanto, alguns eventos da história, como farsa ou não, assim como as ondas do mar, repetidas vezes voltam a lamber novamente as praias da nova sociedade. Do mesmo modo as velhas lembranças, que nos acometem e vêm na sua repetição nos ensinar, ou transmitir um conselho qualquer. Mas vivemos desmemoriados, fast, fugazes onde nossas experiências, aprendizados, são rapidamente descartadas para não ocupar demais a memória RAM. Tudo se torna uma nota, uma breve notícia que no jornal de amanhã nem será lembrada ou comentada. Ficamos perplexos diante de todas as precariedades da sociedade contemporânea. Somos estrangeiros em todas as pátrias. Com o sentimento de que “não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada...A parte isso, tenho ( acredito que devemos ter) todos os sonhos do mundo”.
Já não há mais os apelos solidários, fraternos de união dos povos. Muros caídos, muros erguidos assim ocorre em vários rincões do mundo, muda apenas o discurso de intolerância. E esse era o contexto social e político onde ao mesmo tempo se desenvolviam as nossas descobertas e dramas familiares.
Visitávamos castelos que foram conquistados dos Árabes, igrejas que antes foram mesquitas, sinagogas, as histórias que tínhamos aprendido nos livros agora adquiriam outra cor ou mesmo concretude. Diante das datas, marcas, marcos, línguas e costumes que agiam com indutores das lembranças das minhas histórias, pude assim constatar a força do poeta: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque ele não é o rio que corre pela minha aldeia.” Andávamos pelas ruas com casarões, prédios com arquiteturas tão conhecida. Palavras tão comuns aos nossos ouvidos, nomes, sobrenomes, lugares que tinham o mesmo nome nos dois lados dos continentes. Augusta, ribeiras, Santos, Belém, Madalena ...Os sítios assim nomeados eram um modo dos saudosos conquistadores reterem cá nas Américas a memória, a lembrança da terra ausente, distante. “Ó macio Tejo ancestral e mudo,Pequena verdade onde o céu se reflete! Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.” O que nos irmanava o que nos afastava? Qual era a nossa memória, história comum e se essa história era possível de criar laços ou criar muros, eram questões que me inquietavam. De certa forma eu era mais que um turista acidental ou me propunha a ser.
A ida para Portugal e Espanha criou grande expectativa no meu sogro. Em muitas oportunidades ele se apresentava como descendente de espanhóis e portugueses, sempre de maneira que isso lhe desse algum status por ser um pouco europeu. O pai descendia de portugueses e tinha uma presença fraca na sua formação, quando não, havia um trato pouco amoroso das lembranças desse, que se expressava nas palavras pejorativas dirigidas aos portugueses em geral. Marcas de uma relação conflituosa e rígida. A lembrança forte era do avô materno, espanhol. Este ocupava a figura central de suas memórias de menino. Por ele, o avô, é que havia acalentado a viagem a península e combinado com sua filha. A viagem há muito planejada se tornou urgente quando algumas enfermidades o acometeram. No entanto, nós não tínhamos noção de quanto o Alzheimer havia comprometido sua memória imediata. O que antes para ele seria um encanto, conhecer Portugal e Espanha, no instante que em se concretizou, se tornou uma relação dúbia as vezes de afeto e agradecimento a filha ou jocosidade e indiferença. As memórias recentes se esvaiam. O instante imediato não era apreendido, era esquecido, o último almoço, visita da manhã, a degustação dos pratos típicos, a beleza de Goya, a vista do rio Mondego, o pátio da universidade de Coimbra, o lamento do fado, a espanha altiva, o que era a monumental história de sua história não podia ficar retido. As ruas, as pessoas se misturavam com as lembranças do passado e a imagem que vinha habitar o presente ibérico eram as lembranças do passado quando jovem no Brasil. Até mesmo a imagem passada do que ele acreditava que fosse o “seu Portugal e Espanha” não se coadunavam com o presente vivido. Nada se assemelhava aquelas aldeias de sua memória de garoto. Dissonante, discordante, fugidio o presente escapava-lhe, a terra dos seus ancestrais se tornara desinteressante, fastidiosa, fatigante. A sua personalidade de rigidez e teimosia que se acentuava com a enfermidade dificultavam-no a ter a noção exata do problema que tinha, assim como criar novos hábitos que o facilitasse a navegar por esses mares sombrios do esquecimento. Não havia sabedoria naquele esquecimento. A sabedoria que o poeta descreveu como:“Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,/ E ao beber nem recorda/ Que já bebeu na vida,/Para quem tudo é novo/ E imarcescível sempre.” Havia angustia. Principalmente daqueles que o acompanhavam. O medo de o verem chegar ao quarto da memória e encontrar apenas ..."uma cousa escura com paredes vagamente brancas".
Eu que sempre me sentira um verdadeiro mestiço brasileiro e que em outros tempos jamais me imaginara a caminhar pelas ruas de Lisboa e Madri, percorria cada ruela, sítio histórico entre a contemplação e a meditação. Meditava sobre o destino que me levava a fazer aqueles caminhos, acompanhado de um homem claudicante que em busca das memórias se via desprovido delas. Nesse paradoxo que a vida apresentava importava não somente o efeito biológico do Alzheimer, mas os aspectos simbólicos e sociais que trazia para mim. No aspecto singular e pessoal pensava que poderia no futuro estar sujeito ao mesmo processo que passava meu sogro. O futuro era insondável e assustador. Eu que prezava tanto a memória e a contação de histórias poderia ser vítima de uma doença degenerativa, que iria solapar todas as minhas lembranças, experiências, recordações de amores vividos, o riso novo e o passado, o novo contemplado, degustado e principalmente a minha capacidade de aprender novas coisas. Todo aprendizado requer uma disposição e vontade para querer aprender e ao mesmo tempo um dose de repetição que não teria mais como fazer e reter. Esses pensamentos se apossavam de mim nos instantes mais impresumíveis, diante do quadro as Três Graças, de Rubens o mestre flamengo, e ao admirá-lo o temor de não poder usufruir do Amor, Alegria e da Folia. Ao observar as marcas deixadas nas escadas de um castelo, nas ruínas de uma igreja derrubada por um terremoto, eu receava por vir esquecer os castelos que ergui e os tremores e temores que senti e enfrentei. Reter e perder, faces da mesma moeda do fardo humano. Tudo é passageiro, isto também passará, mas temos a crença ou ilusão de que com a nossa memória eternizamos a tudo e a todos com os quais estabelecemos alguma relação. Que o nosso presente está sobre bases sólidas de um passado menos ou mais virtuoso. O futuro é insondável para todos, até porque a velhice e a morte sempre são as únicas certezas para aqueles que escaparam da morte prematura. Eu era um desses, (não morri quando criança, apesar de ter tantas vezes morrido de tristezas, de alegrias, de amores), a caminhar por ruínas ou por avenidas de uma Europa opulenta. Sabedor e sendo relembrado que senão a velhice, alguma enfermidade, ou as mortes que são tantas, haverão de me desprover de algumas memórias, me privarem das minhas doces lembranças. “Trago dentro do meu coração/Como num cofre que não pode fechar de cheio/Todos os lugares onde estive/Todos os portos a que cheguei...”
Meu sogro no seu caminhar titubeante e constantemente cansado, nas repetidas perguntas e gestos que fazia, na sua preocupação com as horas, na sua busca das raízes e ao mesmo tempo estranhamento delas, a raiva contida, talvez por “não ter trazido o passado roubado na algibeira”, era uma oportunidade que se apresentava de pensar e repensar a mim mesmo. O que sou, ou imagino que seja e do que não quero ser. “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?” Até por saber que há muitos eventos inexoráveis futuros, porém, por acreditar que somos também o que construímos é que fiquei a matutar, a tentar da mistura da experiência vivida, dos poemas e livros lidos na viagem produzir algum sentido.
Sou daqueles que acredita que cada pessoa é um livro de história em potencial, um romance a ser lido no mínimo por aqueles que lhe acercam de imediato. Mas estamos sem tempo. E o tempo esse intolerável não nos poupara. Inocentes ou audazes estamos fadados ao esquecimento? A doença degenerativa da memória aflige não somente os indivíduos ela já se tornou um mal social.
Por isso seguindo os conselhos Alberto Manguel, W.H Mauden e Fernando Pessoa percorri o caminho da linguagem e naveguei por entre verbos, adjetivos, substantivos, poesias na busca de sentido para uma experiência tão intensamente vivida numa viagem as terras de Cervantes e Camões. Não cheguei a nenhuma conclusão, até porque a “única conclusão é morrer”. E eu sigo vivendo e como os marinheiros (náufragos) lançando ao mar garrafas com mensagens, e se por caso elas não encontrarem os endereçados que voltem para mim como memórias.

*todos os itálicos são trechos dos poemas de Fernando Pessoa no seu livro O Eu profundo e os outros Eus. http://www.pessoa.art.br/
“A Cidade das Palavras – As histórias que contamos para saber quem somos” de Alberto Manguel foi o livro que me instigou a escrever esse relato.(http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20081123/not_imp282062,0.php)

terça-feira, 9 de junho de 2009

Memória

Escrever um livro talvez seja a tentativa mais desesperada de reter a memória. Platão achava que a escrita iria fazer as pessoas perderem a memória. O mesmo preconizou alguns arautos do fim do mundo, que a perda da memória aconteceria devido a informática e a internet. Por preguiça armazenaríamos tudo em discos rigidos, chips, celulares etc. É bem verdade que ando esquecendo algumas coisas. Não sei a quem culpar. Já queimei bastante neurônios quando adolescente, mas acreditava até então, que ainda tinha ou tenho alguns milhões deles onde poderiam ficar registrados eventos tão importantes quanto o primeiro olhar da Laura e do Biel, o por de sol na chapada do Arararipe, aquela trepada no mato numa noite de lua cheia, os motivos das marcas pelo corpo, um velho anel, aquele cheiro, aquele gosto, o poema de... aquele autor.... o ...aquele....Não pensem que esqueci...Neruda, Vinícius, leminsk, Carlos, Manuel, Cora Coralina, Elisa Lucinda, Augusto dos anjos....tantos poemas e poetas que fiizeram minhas memórias ficarem mais leves e encantadas. Talvez a minha idade esteja a me roubar algumas boas lembranças, ou o tempo tão sem tempo para dedicarmos a uma boa prosa, a contação de nossos causos regados por uma boa bebida e comida slowfood. Talvez por essa necessidade de reter a memória que acredito na escrita, nos livros. Acredito que os autores sérios escrevem não por vaidade, mas para dar vasão as suas angustias, inquietações, ou tentativa desesperada de poder deter o que é finito. Tudo bem...uma dose de vaidade não faz mal a ninguém. Que se ganhe uns trocados e uns sinceros elogios não é mal. E ainda mais se aquela pessoa que você tanto deseja se deixar encantar por suas palavras e vir a... sei lá...quem sabe... Como diz os mineiros: Bão também! Tudo vale a pena quando a alma não é pequena já dizia... Ah lembrei: Fernando Pessoa. É isso aí, nesses tempos de tantos exercícios físicos vamos ler e escrever, musculação para o cérebro.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Madri com Amélie Nothomb na la Buena Vida

Madri é uma cidade linda. Eu já estava bastante comovido com algumas copas de vinos quando a lua resolveu me visitar na plaza Cervantes, surgindo por traz de um velho prédio do século dezoito. Alegre mas non trôpego resolvi caminar pelas pequenas calles. Fique encantado com pessoas e as livrarias que sao muito charmosas. Perto do Palacio Real, na Calle Vergara, encontrei La Buena Vida - café del Libro. Nesse espaço delicioso encontrei o livro "Ni de Eva ni de Adán" de Amélie Nothomb, que espero poder traduzir e quem sabe obter a autorização para lançá-lo pela Nhambiquara. A autora é uma bela jovem que nasceu em Kobe no Japâo, mas descende de familia belga e hoje mora em Bruxelas. Ganhou projeção Internacional com seu livro Estupor Temblores. Ela escreve com muito bom humor e de maneira biográfica, trazendo uma peculiar visâo do Japão e ao seu tempo de infancia quando lá viveu. Aí vai o endereço da la Buena Vida, que segundo seu proprietário Jesus, amante da música brasileira, pode enviar seus livro a qualquer canto do Brasil.
http://www.labuenavida-cafedellibro.es/