domingo, 20 de setembro de 2009

ensaio cinquentenário


Ensaio cinquentenário.

Tem uma hora em que não podemos evitar de fazer uma reflexão sobre o envelhecer. O termo reflexão é bom, pois ele surge do reflexo que o espelho nos traz, dos reflexos que os outros mais jovens ou mais velhos nos provocam.
Chega o dia em que uma mudança ocorre sutil, às vezes na forma de um sonho, uma sensação, uma pequena dor, um prazer diferente, uma noite insone, um gesto que é feito ou que não pode ser feito, uma palavra ou um olhar que nos é dirigido... e então descobrimos que não somos mais jovem, mais, que estamos envelhecendo.
Vêm milhões de comparações. Afinal, se o tempo é relativo como afirma à física, na nossa breve existência humana ele adquire sentido quando usamos medidas de comparação. Tendemos a nos comparar pela medida dos outros ou em relação a outro.
Comparemos nossa existência, nosso vigor, nossa aparência, nossos feitos, nossas conquistas, nossas derrotas pelo crivo do tempo. Este sim é um devorador de seus filhos. Nada sobrevive ao tempo. O que pode resistir ao tempo? Tudo adquire sentido mediante o tempo. Em quanto tempo? Quanto tempo durou? Quanto tempo ainda eu posso? Quanto tempo ainda eu tenho? O que aprendi nesse tempo? “Tempo rei, oh tempo rei! Não se iludam. Não me iludo. Tudo agora mesmo Pode estar por um segundo...Tempo Rei!”Talvez seja o tempo a nossa ultima quimera.

Quando meus parentes lá na Serra da Capivara resolveram deixar o desenho rupestre de um parto eles queriam deixar na dura pedra uma marca da vida breve e frágil. Assim fazemos desde muito tempo. Precisamos criar marcas, balizas para que no caos do tempo longo e infinito em que somos todos lançados, possamos produzir um sentido existencial e afastar o medo do fim. É o fim que nos assombra. Quando dele mais nos aproximamos indagamos se gastamos ou usufruímos o tempo ganho. Nunca haveremos de ter uma resposta absoluta. Essa relação diária de perdas e ganhos que tomamos consciência é algo inquietante. Às vezes divertida noutros angustiante.

Certa feita, eu, meu filho e alguns de seus amigos mijávamos ao relento, no mato. Coisa de meninos. Prazenteiros, nós observávamos a curva do jorro e o barulho na grama quando um deles fez uma observação quase cruel: Ih! O Tio não consegue mijar longe. De fato. Respondi que eles também não conseguiam mijar por tanto tempo quanto eu. Tinha uma bexiga de camelo. Se já não conseguia mover as pedrinhas de naftalina no mictório do bar pelo menos conseguia segurar por mais tempo a mijada e até mesmo o gozo. Coisas que só aprendemos ou adquirimos com a idade. É um ponto de vista, do jorro, da vida.

No bar a mesa ficou cheia. Pessoas de diferentes idades. Um encanto de encontro. No canto uma moçoila de beleza ímpar, com o frescor da juventude a lhe aumentar a áurea encantadora. Botei reparo. Não tinha a intenção de seduzi-la, mais bem que me lembrei de um tempo passado, em que com certeza, moveria mundos ou pedrinhas de naftalina para tê-la em minha companhia. A conversa rolou e em determinado momento veio um lampejo de sedução. E o que agora seduzia era a conversa boa e inteligente. Tão agradável era a prosa e a sedução das palavras, das histórias, que naquele instante sexo oral adquiriu outro sentido. Coisas ou ganhos que o tempo nos traz. Se vivermos a nossa juventude com a devida intensidade, coragem e gozo quando o tempo chegar para cobrar sua fatura, nós teremos não somente envelhecidos, posto que é inevitável para quem vive, teremos ficado antigos. E é uma diferença importante. Carro velho você se livra, mas um carro antigo você coleciona.

As perdas são muitas e cada dia desde que nascemos é um pouco a mais. Mesmo que tenhamos a ilusão que estamos sempre ganhando. Essa ilusão acaba talvez depois dos quarenta ou cinqüenta. Se estivermos atentos há um momento em que sabemos, que não teremos tempo para realizar todos os sonhos do mundo, mas que ainda podemos sonhar. E não adianta sofrer nem com futuro nem lamentar o tempo passado. Aliás, dizia Sêneca duas coisas importantes, uma sobre o sofrer antes, que segundo ele é sofre mais que o necessário e a outra era sobre a velhice “Quando a velhice chegar, aceita-a, ama-a . Ela é abundante em prazeres se souberes amá-la. Os anos que vão gradualmente declinando estão entre os mais doces da vida de um homem, Mesmo quando tenhas alcançado o limite extremo dos anos, estes ainda reservam prazeres.”

Se meu pai não tinha a erudição de um Sêneca, pois afinal era um sertanejo com pouca instrução ele tinha uma sabedoria admirável. Ele dizia de forma reta: “envelhecer é uma merda! Mas veja bem. Agora que pra fazer uma viagem o tempo é tão curto e não é mais em lombo de burro; que pra falar com alguém tão longe é só pegar o telefone; para beber uma água não precisamos mais ir buscar no barreiro, é só abrir a torneira; agora que batemos num botão, temos luz elétrica e o melhor, as moças não escondem mais os joelhos naqueles vestidos... Eita, agora que tudo está tão bonzinho ter que deixar essa vida, é triste, quero não!” A gente aprende com os antigos!

Quero a vida com largura e comprimento. Se não for possível ter os dois, que me seja larga.
Para viver bem e envelhecer bem, temos que ter certo desapego. Quisera ter o desapego budista, saber do vazio e não preocupar com a poeira que possa se acumular no espelho da minha mente, já que tudo é vazio. Sei que tudo é ilusão, tudo é passageiro mais ainda fico preso e procuro limpar a poeira que nesses anos vividos deixei acumular. Sempre me atirei na vida e agora que sei que ela se move rapidamente. Mais ávido por ela estou.

Já não tenho a ilusão juvenil de que viverei para sempre, procuro não desperdiçar nenhuma gota da água ou do vinho que bebo, nem um naco da boa comida que recebo, nenhuma fragrância do cheiro que me seduz, nenhuma palavra bem dita. Até mesmo as limitações, dores, frustrações que me acometem procuro receber. Tudo é presente, tudo é um presente. Não é que estoicamente aprecie, porém, começo a perceber que não vou conseguir esticar um minuto a mais da minha vida. Encurtar talvez seja mais fácil. Mas tenho dúvida se de fato podemos encurtar ou acrescentar um segundo a mais. Essa arrogância eu não tenho. Sei que muitos tentam esticar, a pele, o pau, eliminar as rugas, os sonhos frustrados, as gorduras. Querem ser o que na verdade o que nunca foram e procuram ser “modernos”, conectados com tudo, a tudo e a todos, menos consigo mesmo. Acho ótimo quando consigo ter a rara sensação de que estou conectado a todos e as vezes que isso me ocorreu estava na mais absoluta “solidão” sem telefone, internet, ou estava na companhia de uma criança ou de um cão. Um aprendizado. Nada tenho contra essas boas facilidades, novos brinquedos que podem nos aproximar. Antes, os pensamentos saudosos ficavam presos, demoravam em serem revelados, anunciados, enviados, hoje em segundos nos revelamos gritamos em torpedos a nossa saudade. Gosto disso.
Em um evento em que se debatia sobre sexualidade alguém quis criar uma desculpa para a escassez das trepadas e trouxe aquela pérola de discurso: “o que importa é qualidade e não a quantidade”. Caralho! Importa a quantidade sim e se for uma trepada bem dada, bem feita é uma maravilha. Sempre achei que sexo e trepar são como democracia para um país, se é pouca é bom, se é muita é excelente. É lógico que com a idade manter o vigor sexual requer mais exercícios. É como qualquer outro exercício físico. Se parar desacostuma, atrofia, perde o rebolado. Sabemos que não será mais como na juventude onde os hormônios saiam pelos poros, a qualquer toque de pele era pau duro na certa, um beijo de língua..vixe Maria. Mas com o tempo descobrimos a maravilha de um beijo de língua, as sutilezas dos toques, das carícias, dos afetos e porque não, das maravilhas das indústrias farmacêuticas.

Do amor. Não é que o amor e o sexo tenham a obrigação de andarem juntos ou separados. Os dois são bons e importantes de qualquer jeito. Cada um tem a sua singularidade e complexidade. Mas assim como sexo muda com a idade o amor também. Não posso esquecer o belíssimo trecho do livro O amor nos tempos do cólera em que Firmina Daza escreve numa carta para Florentino Ariza: “deixe que o tempo passe e já veremos o que traz.” Acalmava ela a ansiosa espera de cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias de Florentino. Não importa o tempo para os amantes. Dizem que ele pode curar as dores de um amor que acabou, pode até nos fazer esquecer um amor, mas não pode impedir que o amor venha, e há quem diga que o amor é capaz de vencer o tempo. Muitas vezes o amor fica lá quieto num corpo velho, adormecido, mas quando sopra o misterioso vento do imortal desejo ele se assanha, fica cheio de frescor, o coração bate forte e mesmo com “o cheiro azedo da idade” o beijo pode ser cálido. E haverá tantas coisas a serem ditas... O amor é pra ser vivido em qualquer idade. O tempo só o torna mais saboroso, mais lapidado, menos cheio de posses e ciúmes tolos, até porque a brevidade da vida nos ensina que não temos tempo a perder.

Já não mijo tão longe, já não como tudo sem sentir azia, já não bebo todas, já não fumo tudo, já não.... Se tem um monte de coisas que já não faço, algumas delas eu estou feliz em não mais fazer. Já não acho que tenho razão em tudo, já não faço ou tenho a estupidez de antes, as grossuras, as indelicadezas. Já não acho que aqueles que não são do meu grupo são menos qualquer coisa. Não deixei de ser radical, mas deixei de ser sectário. Não deixei de acreditar na capacidade humana de fazer coisas boas, belas. Apenas aprendi que somos capazes de fazer também coisas horrorosas. A revolução? Ela é permanente e tem que ser global e começa dentro de mim. E mais do que nunca, não admitirei que ninguém governe meu espírito. Pensando bem...talvez a enfermeira bonita que contratarei quando estive meio baleado.

E para concluir lembro mais uma vez Sêneca “ Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. ..Muito breve e agitada é a vida daqueles que esquecem o passado, negligenciam o presente e temem o futuro”. Chega de desperdícios que venham mais cinqüenta anos.