terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Palafitas
http://www.djibnet.com/photo/salvador/sobre-palafitas-133381918.html
Palafitas ( Desassossego V)
Ela habitava uma casa de palafita. Ocupava-se de consistências. A consistência da madeira, que sustentava a habitação. A consistência da água, que conspirava contra a consistência da madeira, apodrecendo-a lentamente. A consistência do vento, que atiçava água na madeira.
Ocupava-se da consistência da comida nas panelas, ocupava-se em “dar o ponto”. E também da consistência do humor do marido e das febres dos meninos. As febres eram muitas, dado o contato diário dos meninos com o lixo acumulado na várzea.
Ela ocupava-se da consistência das saias, que vestia e tirava no correr dos dias. Se elas rasgavam, ocupava-se em cerzi-las.
Sua ocupação também consistia em preocupar-se com as enchentes ocasionais. Não era sempre, mas às vezes o rio crescia e zoava, com perigo para as palafitas. Ela se ocupava em rezar, quase devorando as palavras das orações, como lobos famintos devoram ares com cheiro de ovelhas.
As consistências de que se ocupava melhor seriam chamadas de persistências. As outras, as arcanas consistências da alma, essas não lhe ocupavam. Em que consiste, afinal, consistir, perguntaram-se em todos os tempos os sábios. Ela também gostaria de ter sabedoria, mas não sabedoria doída. O que a vida lhe doía já era muito existencial. Esses assuntos de sentimentos... Pois tinha um, preocupação é um sentimento, e às vezes basta. Ocupa todo o pensar. Nunca pensara em outras coisas, senão no seu concreto modo de viver. E tinha também amor, concreto, válido para mostrar aos meninos o que deveria ser a vida.
Mas, a vida... Nunca pensara em subjetividades? Talvez um dia tivesse tido sonhos, essas grandes inconsistências, feitas de pura nuvem. Era quando não tinha ocupações. Mas os sonhos quedaram-se num passado remoto, como os toscos conflitos existenciais e questões filosóficas com as quais poderia ter se defrontado. Nunca quis.
Era imperativo ocupar-se da sua própria consistência, que era resistência. Nisso consistia o real, a existência. Do resto, não sabia dizer, nem o queria. Já conhecia a consistência da dor, já estava acostumada com a dor física. Não queria outra, uma dor fluida, como correnteza, uma dor dentro represada, uma dor que às vezes crescia e zoava, com perigo para a alma. Conhecera alguém que se deixara tomar por essas dores e correra doida. Para ela não queria isso, não.
Não queria outras fomes, outras sedes. Não queria outras flagelações, além das já vividas e das que seriam inevitáveis, à beira do rio. Não queria entender, nem ocupar-se de outras consistências, que não as já conhecidas: água, madeira, vento, comida escassa, humor do marido, febre dos filhos. Chega!
O ócio lhe daria outras dores, ela adivinhava no dia-a-dia. Não queria o ócio. Esse não querer talvez já fosse atravessar as arcanas consistências da alma. Mas ela não o sabia, não saberia.
Carmem Vasconcelos - Poeta Potiguar
http://www.tanto.com.br/carmemvasconcelos.htm
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NHAMBIQUARA EDITORA
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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
Um Cão Domingo
Um Cão Domingo (Desassossego IV )
Desde tempos imemoriais discute-se a natureza do domingo. Renato Carneiro Campos despiu o domingo com a sua pena-lâmina, fazendo chorar as frutas maduras e assinalando o dia, como guardião das sensações fundamentais.
Em Brasília, um domingo perdido no calendário das coisas acontecidas eu e meu cachorro parlamentávamos sobre a natureza dos homens, sobre o que lhes fustiga a alma e arrepia a pele do pensamento.
Fidel, cão amigo, um beagle-paisagem, olhava-me, os olhos nos meus, cúmplice, rosto interrogativo, levemente inclinado, orelhas despertas - sinal da sua concentração – e, atônito, dizia-me: ‘reguemos o jardim que as flores brotarão com força‘. Admoestado pela canina lucidez, eu cismava: a solidão e o silêncio são uma dádiva e as flores, luxo de quem alimenta formigas, devem ser reverenciadas...
A casa estava quieta, eu e o cachorro à porta da solidão domingueira, as borboletas tamborilando sobre as folhas, a luz ricocheteando sobre a água, sobre as palmeiras, sobre o olho do animal, fazendo o marrom mudar-se em amarelo e ferver o mel da expressão.
Abri a mangueira d’água e senti prazer em vê-la escorrer sobre a tarde quente, o cheiro do cerrado penetrando as narinas, como se o bolo da vida estivesse sempre saindo do forno.
Fechei os olhos e deixei vaguear o pensamento, como revoluteia a fumaça do charuto, no céu da boca tomada de sensações.
A casa estava plácida como um jardim espanhol, molhado, cantante, como aquele dos mouros, dos reais alcazares, onde se respira frescura e quietude.
Olhei as papoulas plantadas por mim ao longo da cerca e vi que a vida, como o jardim que nos cerca, é fruto da dedicação de um jardineiro fiel. E tomado pela angústia – alma do domingo – sorvi o conhaque com resignação.
Qual é a natureza do domingo?
Afundado em minha rede em Aldeia penso que o domínio do tempo é uma arte. A angústia é filha dos relógios, dos calendários, do seu passo implacável, do seu apetite devorador, do seu micróbio demoníaco, do seu verme.
Penso no domingo como o dia do martírio. Por mais belos, os verdes são perfurantes; por mais despudorados, os azuis são cheios de espinhos.
Afundado na rede, pilhas de jornais de um lado, revistas e livros do outro, vejo que o jardim está cuidado, as begônias enfeitam a lapela da tarde, enquanto as bromélias e as palmeiras ciciam. Por que, então, tamanha melancolia? É o triste do domingo, diria meu fidelíssimo amigo. E arremata, latindo como quem chora: ‘ a melancolia é um mal necessário e o dia de falso descanso tanto serve à expansão, ao cometimento, como ao ofício de pensar, dia de encolhimento, dia de concha ‘. Cachorro bom, o meu.
Salto da rede, aspiro o cheiro de húmus que vem da mata e espreguiço o músculo do coração, indo eu mesmo correr o jardim, tocar as folhas, ver os canteiros, falar com as plantas...
O exercício de deixar a terra entrar pelas unhas acalma, relaxa. A natureza do domingo não é diferente da natureza dos homens. Ela só pede que fiquemos atentos ao vôo dos morcegos. A vida está nas pequenas coisas. Vejo uma teia de aranha tecida ao acaso na porta da frente. E olhando aquele bordado inusitado vejo que o domingo, como a vida, é o que fazemos dele. Assovio chamando Fidel e este, rabo ativo de contente, levanta-se com a disposição dos que peitam a tristeza com a descoberta de que a vida é desafio. Está pronto para sonhar o dia. Leio Manoel de Barros e deixo que as palavras simples irriguem a vida...
De um banco de onde posso ver a maior porção de jardim, lembro daquele domingo planaltino em que recuperei o meu patrimônio extraviado: o céu da deslumbrada infância, um pomar de estrelas, um curral de nuvens afoitas... E o domingo se vestiu do fraque azul do poeta Carlos, um jardineiro fiel.
* Tadeu Alencar - Procurador da Fazenda Nacional e Procurador Geral do Estado.
Desde tempos imemoriais discute-se a natureza do domingo. Renato Carneiro Campos despiu o domingo com a sua pena-lâmina, fazendo chorar as frutas maduras e assinalando o dia, como guardião das sensações fundamentais.
Em Brasília, um domingo perdido no calendário das coisas acontecidas eu e meu cachorro parlamentávamos sobre a natureza dos homens, sobre o que lhes fustiga a alma e arrepia a pele do pensamento.
Fidel, cão amigo, um beagle-paisagem, olhava-me, os olhos nos meus, cúmplice, rosto interrogativo, levemente inclinado, orelhas despertas - sinal da sua concentração – e, atônito, dizia-me: ‘reguemos o jardim que as flores brotarão com força‘. Admoestado pela canina lucidez, eu cismava: a solidão e o silêncio são uma dádiva e as flores, luxo de quem alimenta formigas, devem ser reverenciadas...
A casa estava quieta, eu e o cachorro à porta da solidão domingueira, as borboletas tamborilando sobre as folhas, a luz ricocheteando sobre a água, sobre as palmeiras, sobre o olho do animal, fazendo o marrom mudar-se em amarelo e ferver o mel da expressão.
Abri a mangueira d’água e senti prazer em vê-la escorrer sobre a tarde quente, o cheiro do cerrado penetrando as narinas, como se o bolo da vida estivesse sempre saindo do forno.
Fechei os olhos e deixei vaguear o pensamento, como revoluteia a fumaça do charuto, no céu da boca tomada de sensações.
A casa estava plácida como um jardim espanhol, molhado, cantante, como aquele dos mouros, dos reais alcazares, onde se respira frescura e quietude.
Olhei as papoulas plantadas por mim ao longo da cerca e vi que a vida, como o jardim que nos cerca, é fruto da dedicação de um jardineiro fiel. E tomado pela angústia – alma do domingo – sorvi o conhaque com resignação.
Qual é a natureza do domingo?
Afundado em minha rede em Aldeia penso que o domínio do tempo é uma arte. A angústia é filha dos relógios, dos calendários, do seu passo implacável, do seu apetite devorador, do seu micróbio demoníaco, do seu verme.
Penso no domingo como o dia do martírio. Por mais belos, os verdes são perfurantes; por mais despudorados, os azuis são cheios de espinhos.
Afundado na rede, pilhas de jornais de um lado, revistas e livros do outro, vejo que o jardim está cuidado, as begônias enfeitam a lapela da tarde, enquanto as bromélias e as palmeiras ciciam. Por que, então, tamanha melancolia? É o triste do domingo, diria meu fidelíssimo amigo. E arremata, latindo como quem chora: ‘ a melancolia é um mal necessário e o dia de falso descanso tanto serve à expansão, ao cometimento, como ao ofício de pensar, dia de encolhimento, dia de concha ‘. Cachorro bom, o meu.
Salto da rede, aspiro o cheiro de húmus que vem da mata e espreguiço o músculo do coração, indo eu mesmo correr o jardim, tocar as folhas, ver os canteiros, falar com as plantas...
O exercício de deixar a terra entrar pelas unhas acalma, relaxa. A natureza do domingo não é diferente da natureza dos homens. Ela só pede que fiquemos atentos ao vôo dos morcegos. A vida está nas pequenas coisas. Vejo uma teia de aranha tecida ao acaso na porta da frente. E olhando aquele bordado inusitado vejo que o domingo, como a vida, é o que fazemos dele. Assovio chamando Fidel e este, rabo ativo de contente, levanta-se com a disposição dos que peitam a tristeza com a descoberta de que a vida é desafio. Está pronto para sonhar o dia. Leio Manoel de Barros e deixo que as palavras simples irriguem a vida...
De um banco de onde posso ver a maior porção de jardim, lembro daquele domingo planaltino em que recuperei o meu patrimônio extraviado: o céu da deslumbrada infância, um pomar de estrelas, um curral de nuvens afoitas... E o domingo se vestiu do fraque azul do poeta Carlos, um jardineiro fiel.
* Tadeu Alencar - Procurador da Fazenda Nacional e Procurador Geral do Estado.
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NHAMBIQUARA EDITORA
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